sexta-feira, 24 de junho de 2011

Não Coisa - Ferreira Gullar

Ferreira Gullar


O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe 
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa

de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa ë fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
essa voz somos nós.




Poema extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, editados pelo Instituto Moreira Salles — São Paulo, nº 6, setembro de 1998, pág. 77.
Saiba tudo sobre Ferreira Gullar e sua obra em "Biografias".


Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira), nasceu no dia 10 de setembro de 1930, na cidade de São Luiz, capital do Maranhão, quarto filho dos onze que teriam seus pais, Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart.

3 comentários:

  1. Este é um dos Poemas mais LINDOS que eu já recitei, é o meu Preferido!!

    ResponderExcluir
  2. Lindo, tocante, me inspirou profundamente.

    ResponderExcluir
  3. Realmente é lindíssimo!Adoro quando vc o recita,pois é muito tocante e vc o faz com muita emoção!
    Parabéns mais uma vez pelo blog,maravilhoso e de muito bom gosto!
    Malu

    ResponderExcluir